Estive no sertão nordestino duas
vezes. Na primeira, apenas uma passagem, sem tempo para interagir com seu povo.
Na segunda, do jeito que gosto, parando, olhando, sentindo, conversando,
fotografando e aberta para a aceitação do desconhecido e do inesperado.
Não li Os sertões, do Euclides da Cunha, nem Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Tudo bem. Uma lacuna a
ser preenchida. Os livros estão aqui. Todos os dias olham para mim e perguntam,
e aí, quando você vai nos revelar para si?
Logo, não tenho nenhuma visão
poética e literária do sertão, a não ser as impressões que esta segunda viagem,
ao sertão do Rio Grande do Norte, para o vilarejo de Água Nova, deixou em mim. Quando
falo vilarejo, quero dizer, sua comunidade, que é quem faz a cidade.
E imediatamente surge uma imagem,
que contrapõe àquela mostrada pela mídia, do sertanejo como um homem árido, tosco
e duro, ainda que valente. Para mim o sertanejo é um homem de coração macio. Autentico.
Um sujeito acolhedor, risonho e falante, ainda que num primeiro momento possa
se mostrar rude. Acho que o sol, que surge brilhante às 5 da manhã, dissolve as
durezas. É o calor do sertão afetando o sujeito.
Viver no sertão é conviver com o
imprevisível e fazer dele o caminho. Nunca se sabe se amanhã vai ter água para
beber, ainda que saiba que o sol vai estar lá. Viver no sertão me lembrou os
olhares de alguns filósofos existencialistas, que veem o ser do homem, como
algo em construção. Na quietude necessária do corpo (por conta do calor), a
existência humana vai se construindo, instante a instante, perto do nada, longe
de tudo.
O que vi no sertão
Eu vi 430 km contando histórias. Eu vi o sol nascer e se por.
Eu vi açudes quase secos. Vi cactos e florestas de
carnaúbas.
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Eu vi o vulcão do sertão tirando uma soneca.
Eu vi carneiros e fiquei sabendo que quando o bichinho nasce,
o macho se chama burrego, e a fêmea burrega. Quando cresce muda de nome. A fêmea passa a se
chamar marrã e o macho carneiro. E, depois que a marrã ganha filhotes se torna ovelha.
Eu vi o sertão.
Eu
vi Água Nova, sua arquitetura
e o jeito de ser do seu povo.
Eu vi um Ponto de Leitura que funciona com amor.
Eu vi crianças
encantadas e uma menina de 5 anos narrar com graça e com alma,
A formiguinha e
a neve.
Eu vi
crianças mareando meus olhos ao fazer uma apresentação inspirada no meu
Livro dos
números, bichos e flores.
Eu vi uma Orquestra
de Cordas, da Fundação Educacional Lica Claudino, do município de Uiraúna PB, a
470 km de João Pessoa, tocarem clássicos sertanejos, como Luiz Gonzaga, com
arranjo erudito, misturando as sofisticadas cordas com o popular acordeão.
Arrepiou.
Eu vi um
grupo de alunos da cidade de Tenente Ananias, RN, ali, pertinho de Água Nova,
soprando flautas e tocando tambores. Lindo. Eu vi colegas tocar, recitar,
cantar e palestrar para um público ávido por cultura.
Eu vi um grupo de militantes pela causa literária, realizando
a III Feira Literária de Água Nova, RN, município, que fica a 433 km de Natal.
Encabeçados por Sedima Ferreira França e Keutre Soares Bezerra, quase 40
voluntários passam o ano arrecadando dinheiro com bingos, rifas, festas, cursos; conseguem apoios da comunidade e recursos da
prefeitura, para viabilizar a vinda de artistas de todo o Brasil e fazer a festa. É pouco? Quantas
cidades grandes, com recursos, que não fazem sequer um evento literário.
Eu vi a casa vermelha e daqui, reverencio e saúdo Água Nova
e esses mediadores, sensíveis,
e sabedores do poder transformador da arte
literária.
Sensacional, Cléo Busatto! Cada detalhe em suas imagens uma emoção... Parabéns pelo texto! Lindo Sertão :)
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirObrigada, Cléo, por esse texto maravilhoso e por trazer um fio de esperança pra gente e a certeza de que esse país ainda pode dar certo!
ResponderExcluirÉ muito prazeroso ler o que você escreve, Cléo! Seu jeito lindo de fazer literatura e de deixar beleza nas coisas que fala. Adorei o texto. :)
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