30 de out. de 2010

Um olhar transdisciplinar para a arte de contar histórias

Contar histórias é uma arte antiga, originária no imaginário de um povo e antecede a linguagem e a cognição. Considero aqui o papel do imaginário, pois ele se apresenta como condição para o conhecimento, unindo as diferentes dimensões da realidade e refletindo esse homem inteiro. Seguindo o raciocínio de que contar histórias precede a linguagem verbal, logo me vem à mente a imagem do homem pré-histórico, que ao pintar um bisão na parede da caverna, contava e deixava ao mundo a sua história. Sim, porque é possível contar histórias se apropriando de diversas linguagens, ou antes, diversos suportes. Assim, a literatura escrita ou falada narra uma história, bem como a música, a dança, o cinema, as artes visuais e as novas tecnologias digitais.
Porém, meu foco recai sobre a narração oral e o conto narrado. O contador de histórias surgiu da necessidade de perpetuar o imaginário individual ou coletivo e, nesse contexto desempenhou um papel especial. Ele é a ponte que liga o mundo de fora ao mundo de dentro. Em várias civilizações e tradições, o narrador é o mantenedor do sistema mítico e dos valores da sua comunidade, como também um instrumento que operacionaliza o acesso aos diferentes níveis de realidade.
Se o narrador é a ponte que liga um lado ao outro, o conto é o que escorre nesse vão. A história é a expressão do pensamento mítico do ser humano e uma via ao mundo imaginal, ou seja, “o mundo no qual se espiritualizam os corpos e se corporificam os espíritos”, segundo definição de H.Corbin. O contador de histórias liga as diferentes dimensões. Cria imagens no ar materializando o verbo e transformando-se ele próprio nesta matéria fluída que é a palavra. Empresta seu corpo, sua voz e seus afetos ao texto que ele narra e o texto deixa de ser signo, para se tornar significado. Ele nos faz sonhar, porque consegue parar o tempo apresentando um novo tempo, que se avizinha com o continuo aprender e tem como mediador kairós. Ao congelar cronos, essa dimensão passível de ser medida e seguida, abre-se para a dimensão de kairós, essa relacionada com a possibilidade de se estar presente no presente. Por essa via entra-se num estado de escuta flutuante. Esse conceito é uma alusão à atenção flutuante, de Freud. Por escuta flutuante entendo o se entregar ao que é narrado, sem avaliação e julgamentos, deixar-se levar por um estado de concentração, que liga o ouvinte ao emissor. Ao contrário da atenção flutuante que se opõe à contemplação, a metáfora da escuta flutuante só se completa numa perspicaz contemplação.
Para isso deve-se considerar a qualidade do conto narrado. Ao ouvir uma história atemporal, significativa, cuja arquitetura estruturou-se a partir de símbolos reconhecidos pelo nosso ser interno, somos sugados do nível prático e lançados na dimensão do sonho. Ali, podemos transcender os limites do nosso mundo pessoal fundado em dores e alegrias e nos introduzir na universalidade das vivências e dos sentimentos humanos. Por meio dessas histórias descobrimos que amor e egoísmo, angústia e contentamento, covardia e coragem, crueldade e compaixão, não são privilégios de uma época ou cultura, nem benção tampouco maldição. Elas nos recordam que a busca por uma vida de paz, livre de conflitos e sofrimentos, não é prerrogativa de poucos, mas se estende à condição humana. Essas histórias tem o poder de aproximar o que está longe e reintegrar o que está fragmentado. Histórias dessa natureza ativam o imaginário, provocam o devaneio, nos arrancam de um estado racional para nos aproximar de níveis mais refinados, como o plano do mistério e do sagrado.
Por meio dessas reflexões digo que contar histórias implica numa abordagem e numa atitude transdisciplinar, porque coloca o ouvinte em contato com diferentes níveis de realidades, a partir de onde são ativadas diferentes dimensões do nosso ser. Na dimensão do prático e gestual que se processa por meio dos sentidos, ouvimos, vemos e sentimos o narrador que com seu corpo, voz e afetos nos oferece sensações indescritíveis. Por meio dessa dimensão definimos se uma história é agradável ou não para nós. Mobilizamos também a dimensão lógica e epistêmica, orientada pelo pensamento que se encarrega de produzir conceitos, fazer leituras para a história ouvida. Teorizamos a prática do contador, buscamos uma hermenêutica que justifique a história e o imaginário do povo que deu origem ao conto. Contextualizamos e conceituamos esse conto.
Ao nos permitirmos àquela escuta flutuante ascenderemos à dimensão do mítico e do simbólico que é orientado pela percepção intuitiva. Experimentamos nossas representações e os sentidos que escorrem por elas, resignificamos nossa história a partir da história narrada e ampliamos nossa consciência superior. Ouvir uma história por meio dessa dimensão possibilita a criação de novas conexões com o nosso inteiror, tornando-nos mais despertos e possibilitando a subida a escalas superiores, em direção a dimensão do mistério, do indizível e inexplicável. Por meio desse nível, orientado pelo sagrado, cessam as diferenças ao unificar-se objeto e sujeito, pensamento à experiência, efetivo ao afetivo. Nessa religação entre o que estava fragmentado ocorre a transcendência, a restauração da inteireza do nosso ser e a vivência do pertencimento a algo maior.
Contar histórias ativa essas dimensões, esquecidas por não serem experienciadas e da qual fomos desconectamos, talvez sem saber, e lançados nas brumas do tempo com venda nos olhos. Essa vivência nos proporciona um contato com o vazio que tudo contém, com o silêncio que traz significações. Podemos dizer que ela nos coloca em contato com o Tao, Self, Deus. Seja qual for o conceito que atribuímos a ela, essa viagem interior nos religa ao todo e faz com que nos sintamos parte integrante do universo. Proporciona um alento para o espírito e traz uma confortável sensação de se estar em paz.
Ao refletir sobre esse aspecto da narração de histórias podemos ver o contador como uma espécie de xamã, que ao manipular forças invisíveis por meio do narrado, atua muito próximo da essência, onde tudo é imaterial e por meio do qual chegamos àquele canto da mente, onde tudo é silêncio, onde sou minha própria consciência. E o contador de histórias, ciente da sua função, ao lançar mão do seu corpo, voz, afetos, coração e significações pessoais, pode provocar poderosas alterações no seu ouvinte. Pode restaurar o riso esquecido, a autoestima perdida, a autoconfiança, fé e esperança na vida. Mas, se o contador não tiver sido tocado por essas luzes, se não fizer soar as histórias que podem nos conduzir a níveis superiores de consciência, sua narrativa será mais um passatempos, esvaziado de sentido, como os tantos entretenimentos oferecidos pela cultura dominante.
Então, que venham as boas histórias e um contador sensível e comprometido com ela. Que venham os contos, cantos e os encantos, para embalar nosso coração e restituir a esperança de que viver bem, sob quaisquer circunstâncias é possível para todos.

25 de out. de 2010

Eu e o personagem

      Num desses dias de primavera ensolarada de Salvador, minha anja-da-guarda baiana deixou  escorregar uma revelação pra lá de literária, “achei que Cléo Busatto não ficasse triste; que pra ela o sol não parasse de brilhar; que fosse como um dos seus personagens, quando batesse a tristeza pegava o sol e trazia sua luz pra nos fazer rir outra vez. Achei que Cléo Busatto fosse inabalável”.
       Pasma e boquiaberta diante dessa inesperada revelação nada angelical, reivindiquei minha condição de humana e mortal, passível de me jogar no chão e chorar todas as lágrimas, eu que agora nem mesmo podia ser uma personagem de mim mesma. E se naquele momento havia tristeza no peito, ela logo se transformaria numa passageira melancolia, que iria se dissolver num mergulho, quando eu caisse nas águas de Iemanjá. E ela, a anja, ainda completou “até a pouco tempo, Cléo Busatto pra mim era um livro”.
      Bom, querido leitor, estamos falando de uma conversa entre duas mulheres crescidas, esclarecidas, bem formadas (risos...), modernas, independentes, descoladas e lindas, que fazem escolhas e dão conta delas.      
     Mesmo assim, esse diálogo quase surreal, num domingo de sol de derreter os miolos da gente.
     Agora, imagina você, como é esse papo de personagem e gente de verdade, para a criança que ainda não consegue nem mesmo diferenciar a obra do criador; o escritor do escrito. Ser da condição humana passa longe do mundo dos personagens.
     Literatura não é vida de verdade e os personagens que lidam com os aspectos humanos, servem apenas pra mostrar o que nos diferencia uns dos outros e também, como eu posso me resignificar por meio da literatura, ou seja da fantasia.

8 de out. de 2010

Três momentos na Bienal do Paraná

No Circo das Letras com o Formosos Monstros. Curadoria do espaço e apresentação diária. A conversa com os pequenos gira sobre, monstro existe ou não existe? Com os maiores dá pra discutir o processo de feitura dos vídeos do CD-ROM. Muita atenção e surpresa ao saber que dá tanto trabalho.
A menininha pergunta "isso é prá chamar o unicórnio?" 
instrumento para atrair unicórnios
No Café Literário a conversa foi pequenos leitores, grandes leitores, com Rodrigo Lacerda e mediação do editor do Gaz+, Cristiano Freitas. Vivemos um momento especial na recepção do livro literário no Brasil. Nunca se falou tanto em leitura e do texto ficcional. Jovem lê. Lê aquilo com que se identifica.

Um grupo me cerca. Participantes de uma oficina literária da escola onde estudam. Muita pergunta e a certeza de que iriam levar novidades pra casa, minha mãe que se prepare para ouvir.
Fórum sobre qualidade na literatura para crianças e jovens. É importante ouvir o jovem, dialogar com ele, saber o que ele deseja ler. Impor uma leitura só mantêm as coisas como vem sendo há décadas. A escola precisa ficar atenta pra isso ou permanece no seu papel autoritário de dizer o que é bom pra mim.

E assim foi !

4 de out. de 2010

O florista e a gata no Sagrado

Ana Cristina, professora das crianças, revelou, estavam ansiosos. Aqui está o grupinho. Terceiro ano do Colégio Sagrado. Ora, ser leitor também é uma escolha. Alguns preferem jogar bola; outros ver filmes; outros ainda, ouvir música. Há os que preferem ler. Agora, cá pra nós, criança sensiblizada por uma boa história, que encontra um bom mediador pelo caminho, que convive com o livro, esse dificilmente vai deixar de ser leitor quando crescer.
 Mil perguntas, curiosidade. Revelo que só a idéia não faz um livro. Depois temos um trabalho intenso e minucioso pela frente, para dar forma a essa idéia. Falo da busca das palavras certas e uma aluna logo concorda, "precisa ver se não repete muito a mesma palavra, porque não fica bom". Usa a palavra gata como exemplo. Aliás, os gatos renderam um bom papo.
Ana Cristina puxa o fio, eu vou atrás. A conversa é sobre os sentidos da leitura literária. Conto minha história de leitora e o significado de uma história primeira, aquela que descobriu a Cléo escritora. E eles se põem a predicar. Uma beleza. 
"É como se a gente sentisse os sentimentos dos personagens e vivesse dentro da historia", conclui Lilibeth. "Quando a gente lê um livro parece que a gente está vendo o que acontece com a história", diz Rodrigo. "A gente sente as emoções, parece que está dentro do livro e sente aquilo que os personagens estão sentindo", acrescenta Pedro.
Sim, crianças, é tudo isso e muito mais. As histórias nos despertam, tocam aquele cantinho escondido do nosso ser e às vezes, depois dela, até trocamos lágrimas por sorrisos.
O meu beijo pra vocês. Obrigada Ana Cristina, Luiza e Sagrado. Até a próxima história.

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