O olhar de Neuza é um espetáculo cênico produzido pela Cia do Abração, Curitiba. Registro aqui a minha voz, como um mimo que ofereço às mulheres (e ao feminino dos homens!) fortes e lindas,
sensíveis e criativas, que noite de sábado me deram um presente, O olhar de
Neuza. E, como neste micro do
macrocosmo, tudo é possível, eu observadora, criei uma realidade que iria viver
horas depois. O olhar de Neuza já tinha iniciado e eu nem havia me dado conta.
E agora, dizer o que? Que Letícia
e Fabiana chegaram à maturidade profissional e que a coerência que permeia suas
vidas, se revela como coerência com sua arte? Que a simplicidade e a economia de recursos promoveu a fartura de criatividade? Que a plasticidade cênica criou
uma imagética densa e bela, que desceu às profundezas, repercutiu no ser
interno e, ao emergir trouxe clareza?
Impossível se referir a este
trabalho na dimensão da lógica. Análise? Interpretação? Crítica? Não.Que seja
antes, e tão somente, uma lógica sensível. Só dá para falar de O olhar de Neuza
pelo viés do mítico, do simbólico e do sagrado.
Paisagens
Cena 1
Eu, no meu quarto seleciono
roupas para desafogar o armário. Desafogo também minha alma. Desfaço-me de
máscaras que não uso mais. Quero simplificar. Bastam duas, três peças de cada
roupa, para compor um vestuário. Experimento. Construo personagens. Desconstruo
o personagem. Olho para mim e olho para a roupa. Esta não sou mais eu. Vai para
o saco.
Cena 2
- Desculpa minha falta de jeito.
Há duas semanas me preparo para vir aqui e trazer uma flor para vocês. Vim
assim, destrambelhada, na corrida. Esqueci-me da floricultura. Esqueci-me do
dinheiro.
- Mas você está aqui.
- Um mimo. Era só um mimo.
Lágrimas sobem para a garganta,
ou descem para a garganta? Lágrima, sobem ou descem, quando querem sair?
Controlo. Seguro. Que está acontecendo comigo? Por que o choro agora? O que foi
ativado aqui dentro? Não sei. Não sei. Disfarça.
Ela se vai. É a anfitriã. Eu
circulo pelo espaço. Sinto que algo se mexe aqui dentro, tira o sossego, tira o
prumo. Bom... se fora de prumo já estou é só uma questão de me encontrar neste
desnível.
Cena 3
As luzes se apagam. Uma voz
robusta e doce enche o espaço. Canta um fado. Traz os fatos. Traz o choro.
Engulo outra vez. Fiquem quietas, vocês todas, lágrimas, afetos, desafetos.
Silêncio. Não foram convidadas para este espetáculo. Disfarço e engulo.
Ela canta. Canta o choro.
Cena 4
Subitamente uma imagem se
materializa do outro lado da vidraça. Uma mulher com olhar vazio. As portas se
abrem e sou convidada a entrar num espaço sagrado. Tremulam as lágrimas dentro
de mim. Sei que não vou resistir. Piso em folhas secas. O outono já chegou. O
outono em mim.
Cena 5
Ela fala que não quer fazer
teatro. Que não é a personagem. Que é a outra. A outra. Outra. A outra em mim
se agita. Quer sair. Disfarço. Controlo.
Cena 6
Entre fados e fatos se passa uma
hora, duas, dez? Sei lá. Sou levada a parques, quintal de terra batida, quarto
escuro e frio, precipício diante de mim. Viro puta, escrava, mestre das
mestras, mulher, amante, adolescente abandonada no baile de formatura. Viro do
avesso.
Mas, ela não sou eu. Ela é a
personagem. A Neuza. Eu sou a outra. A que observa. Feito pássaro que olha, de
fora. Mas, ela também sou eu. Ela é feita de todas nós.
Cena 7
Não sei de onde, se veio de
baixo, ou de cima. Enfim, elas chegaram, grossas, salgadas e abundantes. Não
resisto mais. Estou totalmente entregue ao mistério. Cadê meu lenço? Como uma
mulher sai de casa sem lenços de papel?
Cena 8
A voz canta. Fado. Destino.
Moiras tecendo sem parar. É noite. Uma flor. Aquela flor que eu deveria ter
trazido está ali. Vermelha, sangue que não jorra mais. O vermelho sangue se
materializa em panos que escorrem pelo tempo do outono. A voz canta. Doce voz.
Cena 9
Eu me desfaço e me deixo
desfazer. Eu não tenho nada. Acho que ela dizia, eu não tenho nada. Eu não
tenho nada, mesmo assim, trago em mim todos os sonhos do mundo.
Cena 10
A luz se apaga. O ritual acabou.
Saio. E lá, onde me deixei estar, restam duas de mim. Ela, a Neuza, e ela, a
Voz.
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