15 de set. de 2013

A leitura literária e a formação do leitor

   
 Nunca se falou tanto em leitura e sobre o texto ficcional. Já é consenso, que ler é a principal condição para fazer parte da letrada sociedade contemporânea e, que  a leitura promove a formação de sociedades democráticas orientadas pela pluralidade; desenvolve o potencial humano; facilita a inclusão social; assegura a liberdade e a condição de ser um cidadão. É por isto que estar no mundo e interagir com ele, exige continuidade e diversidade de leituras.
   Uma forma de democratizar a leitura é pensá-la como prática social, como ser o leitor de quem não lê. Essa atitude facilita a partilha de afetos, que se manifesta por meio da troca de impressões sobre o que se lê.  No conto A história de dona Cotinha, Tom e o gato Joca  (BUSATTO, Cléo,  in Revista Nova Escola – Edição Especial, agosto 2010.), um menino se torna leitor de uma senhora idosa e quase cega. 
   Já, a prática cultural promovida pela leitura é uma ação que pode acontecer em nos lugares mais inusitados, como ponto de ônibus. Em vários cantos do país podemos ver esta prática se desenvolvendo e, quando não ocorre só com os livros, acontece através das intervenções de artistas, que atuam na interface com outras linguagens.
   Que ler é condição básica para o exercício da cidadania, ninguém tem dúvida. Mas, reconhecer a importância da leitura literária; da subjetividade e da fantasia na formação do ser humano; compreender que a literatura é uma linguagem simbólica, por onde se revelam diferentes dimensões do sujeito; entender que ela expressa diferentes olhares e modos de ser e, que favorece o reencantamento pela vida, ainda não é entendimento da maioria.
     Portanto, cabe a nós, leitores e mediadores de leitura, dimensionar e revelar os efeitos e afetos da literatura na vida das pessoas. Esta ação que se inicia na sensibilização para a escolha do livro literário, dificilmente ocorre sem o papel de um mediador, seja em casa, na escola, na biblioteca e outros espaços leitores.
    Promover a leitura literária é tarefa para um profissional já sensibilizado por ela. Ele é quem vai indicar caminhos e compartilhar o prazer em ler. Formar leitores não é uma tarefa fácil. Exige do sujeito-leitor, um trabalho contínuo e dedicado, a fim de desvendar os meandros do texto, na busca dos significados, seja no mais simples ao mais complexo escrito ficcional. Para esta tarefa pede-se a intervenção de um sujeito-promotor-construtor-de-vivências com a literatura, capaz de colaborar para a formação de outro, o sujeito-leitor-crítico-e-atuante.
  Chamo este mediador de agente do reencantamento, por que, ao promover a leitura, ele compartilha o que tem de mais raro, seus sentimentos e experiência de vida. Com isto facilita ao ouvinte o acesso ao seu mundo interior. Ao ler ou contar histórias para o outro, abrimos o coração e nos tornamos cúmplices, seja daquilo que a história quer dizer, seja dos afetos provocados no ouvinte. Para ser um agente de reencantamento devemos parar o tempo marcado pelo relógio, e descobrir outro tempo, o tempo de estar junto e partilhar uma história com amor. Fazer do conceito kairós, uma práxis.
    A literatura é como um espelho que nos mostra outra realidade, de onde podemos acessar nosso mundo interno. Isso ocorre, porque ela revela a multiplicidade de olhares que o homem lança sobre o mundo. Apresenta vivências, maneiras de fazer e sentir as coisas, de onde a gente pode olhar para nossa história e decidir o que é melhor para nós. Isso acontece, quando entramos em contato com as histórias que tratam daquilo que é universal e atemporal. Costumo dizer que estas são as histórias que carregam a alma mítica do mundo.
   A literatura nos ajuda a reconhecer as relações simbólicas estabelecidas com as pessoas e com o meio e, nos ensina a habitar poeticamente o espaço. Mostra como existir de acordo com a lógica de troca simbólica, no instante da relação com o mundo e com o outro, e nos esclarece que estar no mundo implica em dar, receber e larga.

    É tempo de olhar para a leitura literária e reconhecer que, a dimensão do sensível ativada por ela, é fundamental para o ato do conhecimento. Através das histórias descobrimos que sofrimento e prazer, alegria e tristeza, não são prerrogativas de poucos, de uma época ou cultura. Esses sentimentos nos lembram de como é eterna e universal a busca pela paz e pela liberdade. Que todos nós ansiamos por uma vida de amor, confiança e coragem, livre dos conflitos e das dores.
  Esta sensação de pertencimento sugerida pela literatura faz toda a diferença, pois facilita a experiência com o sagrado, que se revela a partir da expansão da percepção, e que pode ser sentida como uma mudança no nível de consciência. É tempo de pensar as histórias como metáforas que nos mostram como viver plenamente, e o mediador de leitura, como um agente do reencantamento.
  Até agora falamos dos efeitos e afetos da literatura. Mas, o que é preciso reconhecer, e que estratégias usar, para se formar um leitor? Inicialmente gostar de ler e apreciar a literatura. O bom mediador estimula a visita às casas dos livros: livrarias, bibliotecas, sebos. Divulga bate-papos com autores, sugere e promove oficinas literárias, organiza encontros e mostras literárias. Compartilha suas leituras e vibra com as histórias que narra. Lê em voz alta e conta histórias. Estimula a leitura silenciosa sabedor que é no silêncio e recolhimento, que se exercitam habilidades como interiorização, disciplina e concentração. Trabalha com variedade de temas, consciente de que eles formam a consciência ética e estética do leitor.
  O mediador ensina a ler a literatura e percebê-la como uma modalidade de arte. Prioriza obras que sugere o trabalho com a linguagem, pois elas facilitam compreensões e nos ajudam a entender a estrutura da língua. A linguagem tem várias tramas. Algumas mais finas, outras mais robustas. Algumas rebuscadas, outras lineares. Para exemplificar sugiro a leitura de um trecho do livro Pedro e o Cruzeiro do Sul (BUSATTO, Cléo, SM, 2006). 

        Minha avó é a pessoa mais divertida que eu conheço. Quando eu ainda cabia 
        debaixo da mesa, ela brincava comigo de falar frases difíceis. Um dia, ela teve 
        pneumonia e foi parar no hospital. Eu tive varicela e fiquei em casa parecendo 
        um cachorro sarnento. Eu rezava para que minha avó melhorasse logo. E, pra 
        ela não ficar triste, eu escrevia muitos bilhetes. Ela ficou boa logo e voltou pra 
        casa. Foi aí que ela me ensinou a brincadeira de falar frases bem rápido.
        Lembro até hoje. Uma delas era assim:
        
        Era uma velha furunfunfelha de maracuntelha,
        foram na roça furunfunfoça de maracuntoça.
        O marido da velha furunfunfelha de maracuntelha
        foi à polícia furunfunfícia de maracuntícia,
        disse que a velha e a moça furunfunfosca de maracuntosca
        mataram um coelho furunfufelho de maracuntelho.
        Veio o soldado furunfunfado de maracuntado,
        prendeu a velha furunfunfelha de maracuntelha.
        E casou com a moça furunfunfosca de maracuntosca.

O bom mediador entende que leitor é a pessoa que lê, independe do que lê. Não julga. Antes, valoriza e incentiva novas buscas. Entende que ler literatura é uma opção do sujeito; que há pessoas que preferem dançar; outras, ouvir música ou ir ao cinema; algumas preferem fazer tricô, cozinhar. E, têm as que preferem a companhia da leitura literária, e a estas ele diz, fez uma boa escolha.

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