Após anos mudando a casa de dentro chegou o tempo de mudar a casa de fora. Os últimos meses foram de cimento e tinta, poeira e cheiro forte, força bruta, teste para minha paciência e algumas confirmações sobre a natureza do ser humano. Apesar dos saltos tecnológicos e da velocidade com que se processam as coisas, ainda engatinhamos quando se pensa em consciência individual. Continuamos adormecidos, acomodados no conhecido, quase sempre fazendo mal feito o que deve ser feito, satisfeitos com o óbvio, o banal e o vulgar, nos apropriando do que é do outro, seja material ou espiritual.
Ao escrever o brilhante texto O Segredo da Flor de Ouro, C.G.Jung cita as palavras do mestre Eckhart “devemos deixar as coisas acontecerem psiquicamente”, e afirma que “o caminho não é isento de perigo e o desenvolvimento da personalidade é uma das tarefas mais árduas”. Logo me vem à mente, um trecho do Upanixades, que apresenta a imagem dos dois pássaros: o pássaro que bica e o pássaro que olha. O primeiro está preso ao tempo, ativo na ação e passivo no olhar. Enquanto o segundo age como que fora do tempo, passivo na ação e ativo no olhar. Ao exercer esse olhar que percebe o todo, se estabelece a presentificação. Mas no cotidiano agimos quase sempre como o pássaro que bica, focados na rotina, sem exercitar o distanciamento, propriedade do pássaro que olha. Olhar e sentir-se olhado por si próprio, tal qual o segundo pássaro cria outra dimensão. Abre espaço para ser pleno, unifica-se a experiência de ser dois. Amplia-se a consciência de si. Mas estamos longe de nos inspirarmos nesses espíritos transdisciplinares.
Para mim, esse foi um tempo que aprendi a moderar e ser moderadora; usar uma fala leve para as coisas pesadas; denunciar a inconsciência sem cair na doutrinação, por meio de dogmas e ideologias; manter a qualidade dos pensamentos, reconhecer e controlar as energias emocionais. Para não sair do eixo, minha preferência foi pela leitura de autoajuda. Autoajuda sim, ainda que essa palavra possa arrepiar muita gente, provocando as piores associações. Alguém pode dizer, Jung não é autoajuda. É. De qualidade, mas não deixa de ser. E o que tem a ver a literatura com isso, se é certo também, que C.G.Jung não escrevia literatura? O fato é que a boa literatura acaba dando uma força, uma ajuda, para que toquemos bem nossa vida, porque, por um instante, um instante só, ela nos desgruda da realidade prática – espaço do pássaro que bica - e por um instante só permite que vejamos as coisas de outra perspectiva – espaço do pássaro que olha. Isso nos ajuda a entender, ver e sentir diferente. Isso altera a consciência.