No mais longo e
mais frio inverno que tenho lembrança, minha alma endureceu e as palavras
congelaram nos meus lábios. Eu as descongelei a beira do fogo cozinhando geleia
de laranja e adocei a alma, para que ela amolecesse outra vez.
Uma coisa que me
agrada no inverno é laranja e bergamota.
Memória olfativa que trago da infância. Chupava as frutas pendurada na
árvore, ou sentada nos muros de pedra embaixo das bergamoteiras. Ao visitar o pomar do lugar onde nasci, colhi
laranja de umbigo da árvore que minha mãe plantou anos e anos atrás. Estava carregada
de frutas. Virei menina-moleque. Subi na árvore e desci com elas. Presentes da
terra.
De volta à minha
casa e com mais laranja do que poderia consumir, resolvi fazer geleia. Enquanto
mexia o caldo grosso e perfumado, numa alquimia que transformava líquido em sólido,
chegou um pensamento intrometido: se eu não desse certo na literatura iria
morar no mato (quem sabe lá, na minha origem!) e venderia geleia de laranja. Em
seguida outro pensamento, mais generoso e positivo me lembrou que com
literatura não existe isso de dar certo ou não dar certo. Se escrevo, se recebi o dom de me comunicar
pelas palavras, já deu certo.
Para um
pensamento primário, dar certo, pode querer
dizer vender milhares de livros, ser assediada pelos fãs, se tornar
celebridade, etc etc etc. Essas coisas que dizem pra gente e que aceitamos como
verdade, sem ao menos refletir sobre elas. Como nas relações íntimas. Tendemos a
achar que um relacionamento só dá certo, quando se fica junto por dezenas de
anos, ainda que sejam longos, intermináveis e doídos anos. Juntos, mesmo que
não haja mais identificação, nem respeito, nem carinho, e se contabilize apenas
o que é material nessa construção conjunta. Mas deu certo. Viveram sob o mesmo
teto por 50 anos, dizem.
Bobagem. Quando
abstraio esse lugar comum do “dar certo”, me dou conta que em literatura, assim
como no exercício das outras artes, e nas relações afetivas, dar certo, é se respeitar
no processo criativo, seja da linguagem que se escolheu como forma de
expressão, seja na partilha com o outro (o que não deixa de ser um ato
criativo, pois promove transformação).
Dar certo é habitar poeticamente o mundo, respeitando nossa verdade e
reconhecendo o simbólico da vida, que é dar, receber, largar. É na ação de
criar - movimento interno que pede um ser pleno e presente na ação - que é gerado
o prazer e a harmonia, condições essenciais para viver bem. Isso é dar certo. Vender
muito livro ou contabilizar os anos que se mora junto é outra coisa.
Enquanto as
ideias passeavam livremente pela minha mente, a geleia ficou pronta. E, penso que o melhor de tudo, seja mesmo ficar
com as duas, mexer a literatura, enquanto se amadurece uma geleia de laranja.
Amando, é claro.