16 de fev. de 2011

Ficando com que é seu

Ele gritava, ela chorava. Assim passavam os dias. Quando abriam um tempo para respirar, se olhavam e não se reconheciam. Quando lhe perguntavam, por que ficava com ele, ela respondia, porque eu o amo, porque ele é assim e é preciso aceitar as pessoas como elas são.

Ele gritava, ela chorava. Assim passaram meses. Anos. Ela não era feliz. Tampouco ele. Um dia ele teve dor de garganta. Parou de falar. Ficou um dia sem gritar e ela achou bom. Dois dias no silêncio. Muito melhor. Três, quatro, cinco, seis. A dor não cessava. A garganta inflamada. O médico disse, poupe sua voz. Ele seguiu a recomendação, mas nem voz tinha mais.

Duas semanas se passaram e os gritos presos na garganta quiseram sair. Ela o irritava com sua mania de lixar as unhas em cima da mesa. Mas o grito não saiu. Ela e sua mania de comer biscoito enquanto zapeava a televisão também o irritava. Outra vez o grito não saiu. Ele engolia a raiva, a frustração de não poder dizer tudo que estava preso na sua garganta. A inflamação não passava. Um alívio, sim. Mas a voz não voltou.

Ela estava adorando a vida sem gritos, podia até ouvir o pulsar do seu próprio coração. Quanto tempo fazia que já não ouvia a voz do seu coração?

Chegou um tempo que os gritos sufocados na garganta começaram a sair pelos poros, pelas pontas dos dedos e ele bateu forte na mesa. Socou os travesseiros. Bateu forte na porta e, quando ela o confrontou nas suas verdades tortas, ele bateu forte nela e os gritos, todos os gritos ocultados na raiva do seu ser se transformaram num ato brutal.

Ele batia, ela chorava. Assim passaram os dias. Assim passaram meses. Anos. E quando perguntavam para ela, por que o aturava, ela respondia, porque eu o amo, porque ele é assim e é preciso aceitar as pessoas como elas são.

Um comentário:

  1. Cléo, minha querida Cléo,

    Que texto forte e belo. Eu me embriaguei toda dele e quanto mais eu lia, mais eu queria tomá-lo por inteiro. Foi quando lembrei de um poema do Baudelaire que diz assim:

    É necessário estar sempre bêbado.
    Tudo se reduz a isso; eis o único problema.
    Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo,
    que vos abate e vos faz pender para a terra,
    é preciso que vos embriagueis sem cessar.

    Mas – de quê?
    De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.
    Contanto que vos embriagueis.

    Foi assim que eu me embriaguei do teu texto. Que iluminura você teve neste dia! Bom para nós leitores...

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