foto Marcelo Andrade | Gazeta do Povo |
30/07/2016
A voz da Cléo que nos acuda
José Carlos Fernandes | Gazeta do Povo
“Esse produto é ótimo”, dispara um empolgado estudante do curso de Vendas, do Senac, depois de assistir a uma contação de histórias feita pela escritora Cléo Busatto. Foi na última segunda-feira, no auditório da Biblioteca Pública do Paraná, durante uma das apresentações da turnê Histórias da Cléo, iniciada em março, com agenda marcada em mais de 20 cidades da Região Metropolitana de Curitiba. O projeto é uma daquelas muitas jornadas em segredo, nas marginálias da cultura.
O menino do Senac tem faro. Cléo não dá braçadas numa piscina cheia de euros, mas seu modelo de negócio é o tal do borogodó – sem deixar de ser um serviço à literatura. Apenas em 2016, essa guria de 1,54 metro, pinta de menestrel e voz de encher catedrais fez 50 apresentações, o equivalente a quase duas por dia. Não larga a garrafinha de água, sob o risco de arruinar seu instrumento de trabalho, o gogó forjado nos ecos do Vale do Rio do Peixe, Barra do Pinheiro, Santa Catarina, onde nasceu.
Precisa de um seguro. Apenas nos últimos cinco anos, calcula ter atingido 100 mil pessoas, 40 Guairões lotados. Levando-se em conta que está prestes a fechar duas décadas de carreira de “contadora”, o cálculo saltaria para algo próximo de 400 mil ouvintes. Some-se pelo menos 20 livros e CDs publicados, mais oficinas para a professores e interessados – em quantidade a perder de vista. Não passa um dia sem escrever 1,5 mil palavras. Conta com no máximo duas assistentes, isso quando os ventos monetários sopram como música. Na maioria das vezes, dá-se tudo na base do eu sozinha.
O début de Cléo Busatto no mundo encantado das contações de histórias se deu em 1997, por acaso. A cena é hilária. Atriz e produtora de uma companhia de teatro infantil, em São Paulo, viu seu negócio virar farelo. Falida e de volta a Curitiba, cidade onde tinha raízes, trouxe do antigo negócio apenas um enxoval de roupas de espetáculos. Ao saber da inauguração do Shopping Estação – alardeado à época como o primeiro shopping de lazer do país – abriu a mala e se mandou para a inauguração vestida de fada, só por sarro. Deu que as crianças a seguiram pelos corredores, em polvorosa, o que lhe serviu de sinal: para ser atriz, não precisava de um grupo, nem de uma sede, nem de um staff. Estava feita.
É melhor não tentar copiar essa receita em casa, como se brinca. Cléo é a tal da mulher para quem a soma dos fatores altera o produto. Tem experiência em armar espetáculo, captar patrocínios, sem que essa tarefa, que na maioria dos casos resulta em acessos de fúria, a deixe arriada. Diferente de estilistas em fins de desfile, que cruzam a passarela acabados e com a roupa amarfanhada, Busatto produz e encena com a facilidade de quem pula uma poça de água. É filha da deusa Durga, a dos oito braços, mas jura que seu jeitão tem a ver com a italianada e com a prática: aos 9 anos já ensinava catecismo num programa de rádio catarina.
Seu último figurino, por exemplo, é uma elegante saia plissada, salmão, acompanhada de um tênis tipo All Star. Tem a ver. Ela precisa, afinal, algo confortável nos pés para resolver problemas técnicos no palco ao mesmo tempo em que rodopia seu saiote de normalista da década de 1950. Ficou craque na dupla função. Faz de uma parada para molhar a garganta uma performance. Quando tem de fugir para trás da cortina, para dar um jeito na maldita microfonia, faz do imprevisto uma comédia pastelão. Gargalha das gralhas. Se solta palavrões em segredo, não se sabe.
Eu sou uma escritora que conta histórias. Faço 500 coisas, mas tenho de escrever 1,5 mil palavras por dia...
Mais do que a agilidade, impressiona a rapidez com que Cléo ganha a plateia. “É empatia. Bato olho e já sei qual é o público”, dispara, numa resposta pronta. Dá para arriscar dizer que o segredo da contadora ultrapassa a capacidade de adivinhar o dial do público. O espectador para ela não é massa, nem patota de alunos, nem uma galera que sabe menos do que ela – uma expoente da literatura infanto-juvenil, com obras publicadas por gigantes como a Record, Scipione e FTD. Trata-se de gente que está ali porque gosta de literatura falada em voz alta. Não os subestima, o resto vai no xixi.
Uma prova dessa tese é que ninguém conseguirá flagrar Cléo Busatto em atitudes tatibitate. O gestual jamais segue a linha “batatinha quando nasce...” Que caia um raio se isso acontecer. No seu extenso repertório sobre lendas e mitos, trata de figuras que há muito sumiram das conversas de família e dos livros escolares. Encena seres estranhos à piazada, a seus pais e aos professores. Mesmo assim, não usa de recursos pedagógicos para apresentá-los, o que faria de suas concorridas apresentações uma continuação da sala de aula. Crianças, adolescentes e adultos, não importa, todos podem apreciar o que ela tem a oferecer, pois estão ali à espera da boa palavra. Eis o pacto.
“Paiquerêêêê...”, canta, de posse de um diapasão e de uma espécie de cítara africana, a kalimba. Sua voz é afinadíssima e mal dá para acreditar que ela conseguiu se concentrar depois de ter falado com a plateia, usado uma estranha linguagem de sinais com sua contrarregra, arrancado risadas, batido um papo com o garoto que disse não saber lhufas o que seja sonoplastia e ainda dado um trato no cenário capenga. Ao primeiro trinado, não se ouve pio – mesmo que a maioria ali não faça a mínima de que Paiquerê é o paraíso.
O mesmo vale para o Uirapuru, cuja lenda conta seguida de uma canja musical e de uma conversa reta sobre onomatopeias. São sua especialidade, o que faz dela uma encarnação da peruana Yma Sumac. Devia formar um trio com pantaneira Tetê Espínola e a portuguesa Maria João. Hu-hu.
Para quem a essa altura acha que tudo isso é diversão demais para uma tarde senegalesa – e sem ar condicionado ligado – saiba que tem a hora em que Cléo vira uma gata. Gregor Samsa de Kafka desperta um imenso inseto. Ela acorda uma felina, mas sem drama. Curte seu dia de folga pelos telhados. Miau aqui e ali, os desejos de liberdade da plateia saem do armário, vazam pelas calhas e chegam aos beirais. O cenário da biblioteca, quase sem nada, abriga por minutos a ilusão de que se está na Broadway, sendo inundado pela pirotecnia de um musical. Talvez seja tudo verdade.
Epílogo
A contação de histórias é tão antiga quanto as palavras. É preciso recorrer a Deus e sua época para marcá-la no mapa do tempo. Melhor procurar um marco.
Aqui no Brasil, virou política cultural em maio de 1992, por meio do projeto Proler, da Biblioteca Nacional, covardemente extinto pelos burocratas.
O Paraná abraçou a proposta, com a peleja, entre outros, da pesquisadora Marta Morais da Costa, da UFPR. Hoje, tem-se a Casa de Contação de Histórias e pelo menos 500 contadores na rede municipal de ensino, sob a batuta de Margareth Fuchs.
Se é um movimento cultural? Duvide se puder, cara pálida.
No palco com Cléo
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